Entre Chamas e Ilusões de Avivamento

Pedro Silva
4 min readSep 24, 2024

Este texto nasce como um desabafo, uma tentativa de dar voz às cicatrizes silenciosas de uma geração moldada por um ideal de espiritualidade que exalta a “radicalidade” como o único caminho digno. O chamado parecia urgente, as promessas eram sedutoras, mas as consequências dessa busca desenfreada não podem mais ser ignoradas.

Desde cedo, fui imerso em um ambiente onde expectativas inflacionadas sobre um avivamento iminente alimentavam uma revolução divina prestes a varrer o Brasil. Conferências lotadas, onde o ar estava carregado de ansiedade por um mover de Deus que nunca parecia chegar. Estávamos sempre à espera de algo gigantesco. Não havia espaço para dúvidas; permanecer à margem era ser morno. “Sacrifiquem tudo”, “marquem a sua geração” — essas eram palavras repetidas como mantras, um evangelho de performance.

Nas entrelinhas dessas profecias, havia uma exaltação do sofrimento. “Jesus quer quebrar você, ofender seu coração”, diziam, como se o propósito de Deus fosse nos moer até nos tornarmos irreconhecíveis, alheios a qualquer desejo humano. E nós, jovens ávidos por significado, acreditávamos.

Fomos moldados por profecias sobre “nazireus”, “precursores” e a “geração de ouro do fim dos tempos”, que, segundo essas conferências, iriam morrer como mártires no Oriente Médio. Ouvíamos sobre “profetas” 🇺🇸 que afirmavam ter visões sobre nossa geração. Ironia cruel: muitos desses “profetas” 🇺🇸 agora estão envolvidos em graves acusações de abuso espiritual e sexual.

Essa “carismania” deu origem ao que chamo de “folclore carismático” — um tecido entrelaçado de expectativas idealistas e espiritualidade fantasiosa. Um amálgama de ilusões que levou muitos a abandonarem suas cidades, faculdades e trabalhos.

Diziam-nos com fervor que “o padrão de sucesso de Deus não é o dos homens”. No entanto, ironicamente, muitos dos que pregavam essa mensagem viviam cercados de luxo — frequentando restaurantes caros, viagens, tenis caros — um contraste gritante com o desapego que encorajavam nos jovens. Não há problema algum em alcançar prosperidade fruto de trabalho honesto. O ponto de reflexão aqui não é a riqueza em si, mas a incoerência entre o discurso de simplicidade e a prática de extravagância. Quando esses líderes se recusam a adotar uma vida simples no presente, mas romantizam suas dificuldades do passado como uma narrativa de “superação” para persuadir jovens a seguir o mesmo caminho, algo está profundamente errado.

Se não estão dispostos a abrir mão de seus confortos atuais, que ao menos não incentivem jovens, com um fervor sincero por Jesus, a levar uma vida difícil e sacrificada sem a mesma disposição de renúncia. Pior ainda é quando, diante das dúvidas ou do cansaço, a única resposta dada a esses jovens é: “Seu problema é que você não está satisfeito em Deus.” Esse tipo de retórica é desonesta e nociva.

Enquanto nos pregavam que Deus nos chamava para o deserto, para o anonimato, investiam grandes somas em marketing agressivo para promover suas redes sociais e vender cursos.

Movidos por esse imaginário distorcido de elitismo espiritual, muitos de nós tomamos decisões impulsivas, seja para escolas missiónarias, escolas ministeriais, ou coisas afins. Anos depois, o retorno à realidade trouxe dor e sensação de termos desperdiçado tempo em causas que Jesus nunca nos chamou a abraçar. Aqueles que largaram tudo eram aplaudidos, enquanto os que, exaustos, perceberam que a “nuvem” era apenas névoa foram relegados ao silêncio e à culpa.

Agora, muitos de nós, que outrora devorávamos livros sobre avivamento e enchíamos essas conferências, sentimos uma desconexão profunda. A romantização da radicalidade deixou uma geração esgotada. Promessas não cumpridas e expectativas irreais deixaram cicatrizes profundas que continuam a reverberar.

Com o tempo, começamos a perceber um padrão preocupante. Não é coincidência que tantas pessoas envolvidas nesses ambientes enfrentem crises emocionais graves. E, mesmo assim, o sistema continua a girar, alimentado por novas promessas, novas gerações e novos nomes. “The show must go on”.

Ouvir amigos que foram sugados por esse sistema apenas reforça a sensação de que nossa paixão genuína foi manipulada para sustentar ministérios crescentes, sustentados por promessas vazias. Não há público mais suscetível do que jovens ávidos por participar de algo grandioso, desejosos de amar Jesus com fervor.

Acredito que muitos líderes agiram com boas intenções, mas a realidade é inescapável: o sistema os moldou da mesma maneira que nos moldou. Hoje consigo enxergar que muitos deles também foram vítimas de padrões impostos. Felizmente, alguns estão começando a perceber as fissuras na estrutura, mas o estrago já foi feito.

Não por acaso, muitos ministérios carismáticos norte-americanos, promovidos nas conferências que frequentamos, estão agora envolvidos em denúncias de abuso espiritual. A romantização do avivamento, das paixões intensas e dos discipulados extravagantes frequentemente encobre histórias de abuso espiritual, e o “elefante na sala” permanece ignorado. Vi e ouvi muitas coisas que carrego e que ainda preciso lidar em terapia. Constantemente preciso me lembrar e ser lembrado que Jesus não é o culpado disso.

Além disso, é essencial reconhecer que o desejo por avivamento e de amar Jesus de todo o coração não são responsáveis por esses erros. Como diz Nando Reis em “O Segundo Sol”, “Eu só queria te contar Que eu fui lá fora e vi dois sóis num dia E a vida que ardia sem explicação.” Apesar das complexidades e traumas, mantenho a esperança de que, mesmo em meio ao caos, o Espírito Santo despertará uma juventude apaixonada por Jesus, ansiosa por uma renovação espiritual genuína e integralmente sustentável.

Que Cristo seja redescoberto, não como o Deus de grandes espetáculos, mas como o Deus presente em cada pequeno e honesto passo de fé. É nessa simplicidade, na hospitalidade, na doçura e na beleza que encontraremos a cura para as chamas que, por tanto tempo, nos queimaram.

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